Adorável rosto oval em compleição esguia

Escrito em Nov./2006

Bia Bonduki
2 min readOct 31, 2021

Eu poderia te deixar por ele.

Entrou no ônibus bem quando eu tentava decifrar a menina do outro lado do corredor. Ela não era nada bonita, mas tinha uma voz doce e grave. Ele passou pelo meio dos meus pensamentos e interrompeu a minha observação, para me olhar nos olhos timidamente e se sentar no banco da frente. E continuar, o descarado, me observando pelo reflexo da janela. Ok, essa última frase é invenção minha, mas é que teria sido melhor se tivéssemos continuado essa troca de olhares por mais algum tempo.

Sacou um livro que o reflexo me mostrou ser de James Joyce, mas não qual. E entre lembrar dos olhos esverdeados e das bochechas meio caídas, generalizei: “será que ele é gay? Gay adora James Joyce”.

Segui viagem olhando através do que a cabeceira de seu assento me permitia: sua nuca, as orelhas de abas fininhas, a barba por fazer. Me imaginei deixando um único beijo em uma das bochechas. Mexendo em seu cabelo. Em que ponto iria descer. Torci para que fosse no meu, mas logo ele tirou a nuca do meu campo de visão e se levantou, botando o livro na bolsa. Olhei melhor: calça jeans caída, tênis preto de cano alto. Mais de 1,90m. Inegável cara de bobo. Todos seus atributos sendo marcados da minha lista de atrativos. A jaqueta surrada com cores da moda da década de 70 tinha cara de ter sido comprada em uma loja cara.

A menina também se levantou, ele seguiu para a porta de trás. Droga. Será que ele iria voltar e me pedir para fugir com ele?

Não pediu, desceu e foi embora. E nem olhou para dentro do ônibus quando passou pela minha janela. Mas, ainda assim, eu poderia te deixar por dele.

Semanas mais tarde – você já havia me deixado – estava descendo pela última vez pelo elevador do meu prédio, iria fazer uma viagem de meses. Eu vestia roupas estranhas e carregava uma caixa com secos e molhados remanescentes da minha cozinha. O elevador parou no andar de baixo e um rapaz adentrou. Quem? Ele. Com as mesmas bochechas flácidas e a mesma jaqueta vintage. O mesmo olhar tímido esverdeado encontrando meus olhos. E eu querendo falar “oi, você me atormentou por um domingo inteiro”, mas não o fiz. Fiquei parada, eu e meus trajes de dar medo, enquanto ele se ocupava de existir, em toda sua glória, no mesmo elevador que eu.

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