Aquarela do Brasil
Esta era a minha classe da pré-escola: cinco meninas, cinco meninos. Meninas de rosa, meninos de azul, a maioria com alguns dentes de leite faltando na boca. Considerando as classes que vieram depois dessa, foi uma das mais diversificadas das quais já fiz parte.
Estudei em uma escola particular, fundada por quatro pedagogas que acreditavam na máxima de Édouard Claparède de que não há nada mais sério que uma criança brincando. Inclusive, era o slogan da escolinha. Lá, participávamos de atividades que iam desde brincar na areia a atravessar túneis de tecido, aprendíamos a pintar com guache e canudinho, fazíamos aulas de música, dança e karatê. Aliás, a divisão de gênero entre as duas últimas atividades foi quebrada por uma menina chamada Rafaela, que quis fazer os dois. E não bastava o collant dela ser azul, a meia-calça também era.
Não havia castigo por lá: se aprontávamos alguma arte — como da vez que combinei com a Mariana de gritarmos palavrões juntas e ela deu pra trás — éramos convidados a “descansar”. O clima era sempre de tranquilidade, e foi onde fiz amizades que ainda mantenho.
Mas tinha um negócio: cidade pequena do interior, começo da década de 1980, você deve imaginar o quilate das mães dos aluninhos. Sabe esse lance de “Karen” que os norte-americanos vêm usando com frequência? Eram maioria. Daí você tira o tanto de racismo, classismo e preconceitos em geral que as professoras tinham que lidar no trato diário.
Minhas melhores amigas eram a Amanda (última à direita) e a Fabiana (à esquerda da Amanda). Formávamos o Trio Calafrio, nome dado por nossas progenitoras, provavelmente aludindo ao nosso comportamento angelical. Nossa proximidade não impediu que, por muitas vezes, minha mãe tivesse que ouvir das conhecidas “esposas de médico” alguns questionamentos sobre as escolhas das minhas amizades.
— Mas você tem certeza que a Aninha não quer ir na casa do Dr. Fulano brincar com as meninas dele? Elas são tão mais a cara dela…
Em “meninas dele” leia-se “bruacas que eu provavelmente já tinha sentado a mão na cara”. Minha mãe respondia que quem decidia as minhas amizades era eu mesma, e que eu parecia feliz com minhas escolhas. E, olha, fico contente em saber que ela fez assim, porque olhando em retrospecto eu ia me ressentir demais por ter sido obrigada a brincar com jacus de quem eu não gostava nem um pouco.
Mas então, esse era o tipo de palpite que se ouvia das mulheres da sociedade. E as professoras confessavam a alguns grupos de mães os horrores que chegavam a elas. Do tipo uma fulana pedir pra trocar o par da quadrilha da filha grandona por um moleque baixinho, porém filho de gente conhecida, pra ela não precisar dançar com o menino negro e adotado. Não vou dar mais exemplos porque meu intuito não é de ferver o sangue do leitor com comportamento que a gente tá careca de ver. Eu quero contar é do plano das professoras.
Em 1987, minha turma do Pré-primário ia se formar. A apresentação no final de ano seria composta por uma variedade de danças de diferentes culturas, juntando todas as salas. Por motivos óbvios, entrei para o grupo que faria uma apresentação árabe, minhas tias vindo de São Paulo para ensinar o Dabke para a tia Fi, professora de balé. Uma classe de meninas mais novas recebeu a visita da Alice, mãe da Isabela, descendente de japoneses, para aprender o Shibu. E como a escola era pequena e não dava pra enfiar muitos países na programação, o terceiro e último ato seria a Aquarela do Brasil. Estrelando, de Carmen Miranda, a Amanda.
Não só a Amanda merecia o papel de destaque, por ser uma menina cheia de graça e que dançava muito bem, aquilo também era um elaborado cala-a-boca pelos anos de preconceito velado e sensação de direito sobre os outros que certas mães praticavam sem a menor vergonha na cara. Era meio assim: Aaah, você jura que seu filhão é o mais brilhante dentre os moleques? Pois vai dançar entre outros quinhentos, que é pra aprender a ficar de boa. Sua filha é linda, parece a Xuxa? Beleza, tem outras 15 que acham o mesmo.
A fantasia, impecável, foi planejada e composta durante o ano, em viagens que a mãe dela fez para São Paulo. Tia Laura, conhecida pelo seu acarajé e também por ser uma dançarina exímia, veio ensiná-la alguns trejeitos da Pequena Notável. A Amanda brilhou, como já era de se esperar. Atravessou o palco em meio a baianas e malandros de cinco e seis anos. No dia, lembro de ouvir com uma ponta de ciúme (eu era o próprio green-eyed monster quando criança) os ais e uis de minha mãe e seu grupo de amigas vendo a menina se apresentar.
Se o recado foi bem dado e as mães nunca mais foram injustas ou racistas com alguém, eu não sei dizer. Acredito que não. Isso também não deve ter evitado que no futuro ela não tenha passado por situações assim. Mas me emociona saber que, naquele momento, foi dado um lugar a quem merecia, e não a quem, por uma série de privilégios, acreditava ter direito sobre ele.
Uma última observação: no ato árabe, também foi preciso criar um personagem de bobo da corte para o Raphael, gay desde criancinha, para que ele pudesse virar estrelas num palco. Ele relembrou orgulhoso dessa apresentação quando nos encontramos no Orkut.