Beija, beija

Bia Bonduki
3 min readFeb 13, 2020

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A história começa com um outro personagem, necessário para explicar o contexto. Vou chamá-lo de Sula, pois sul-africano.

Para mim, ele era a melhor descrição de galã feio. Tinha olhos com heterocromia, se parecia bastante com o ator Willem Dafoe, seu cabelo lembrava uma peruca da cor da asa da graúna. Sofria de narcolepsia. Ou seja, em toda festa que eu ia, lá estava ele dormindo, todo rabiscado pelos colegas, agarrado a uma latinha de cerveja meio cheia. Eu olhava para ele e pensava “nossa, que homem FEIO. CREDO. Que ÓDIO dessa cara”. Até o dia em que a gente começou a conversar numa dessas festas e acabou se beijando — e o registro fotográfico desse momento, feito por uma amiga maliciosa do rapaz, me fez criar uma conta no Facebook só para salvar a foto e guardá-la em meu coração.

O que se seguiu foi pura piada: o Sula me convidou para ir pra casa dele e cuddle. Eu adorei o uso da palavra e aceitei o convite. Partimos, mas aí ele dormiu dentro do ônibus, nós perdemos o ponto e o motorista, já ciente da síndrome de seu passageiro, voltou para nos deixar no lugar certo. Na casa dele, cumprimos o proposto e dormimos de mãos dadas.

Levando em conta todo meu histórico emocional, é possível dizer que no dia seguinte eu me encontrava em completo estado de apego. E foi por isso que aceitei muito mal quando ele me encontrou dois dias depois numa boate e, ao pedir a ele um beijo, o depositou na minha testa. Pedi licença e fui pro banheiro chorar.

Eis que entra o verdadeiro personagem desta história, o qual chamarei de Imundo. Eu não sei de onde ele surgiu na época em que vivi tudo isso, só sei que o observava em festas e comentava com as amigas:

— Esse argentino é tão gostoso que polui meus pensamentos. — na época, a novela Belíssima tinha acabado de passar, e a personagem da Claudia Raia chamava o personagem do Reynaldo Gianecchini de “mecânico imundo”, enquanto se agarrava com ele. Daí, o apelido.

Eis que Imundo estava na saída desse mesmo banheiro onde eu chorava, e quando cruzamos olhares ele veio falar comigo. Nem lembro o que falamos, só sei que a gente se agarrou imediatamente. Eu mal conseguia acreditar, eu tinha acabado de tomar um passa-fora de um homem feio e agora me encontrava nos braços desse delicioso brutamontes. E como num roteiro de livrinhos eróticos do nível “Sabrina” ou “Bianca”, nossa relação se resumiu a grandes malhos em locais públicos, afinal, dividíamos apartamento com mais gente e nada comportaria nossa energia entre quatro paredes — gosto de acreditar.

Na minha última noite morando naquela cidade, saí para comemorar. Fui pra uma boate, onde o encontrei, mais uma vez, saindo do banheiro. Será que esse era o modus operandi dele? Não sei. Ele me agarrou e me levou para um corredor escuro, onde iniciamos mais uma sessão de pegação intensa. Era minha última vez naqueles braços, eu fazia das tripas coração. Sabe-se lá quando ia ter novamente a oportunidade de pegar um cafuçu daqueles na minha vida, precisava aproveitar. Até que ele veio no meu ouvido e sussurrou:

Besabesa

Uai. Ele continuou me beijando e eu o beijando de volta. De novo:

Besabesa, nena

E a agarração continuava.

¡Besa! — agora ele já estava mandando.

Usei de todo meu portunhol para me justificar, temendo acabar com o clima:

¡Pero estoy besando!

Aí olhei pra baixo e entendi. Ele não queria um beijo na boca, e sim na testa. Na testa do pau dele, de preferência.

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