Minha primeira viuvez

Bia Bonduki
5 min readAug 17, 2021

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Pra falar sobre o Duba Duba eu preciso antes contar sobre a primeira banda que me fez tiete: o New Kids on the Block. Aos nove anos, poucas coisas ocupavam mais a minha cabeça do que o desejo de ir a um show deles e poder gritar o nome do Jordan Knight com todo o ar que saísse dos meus pulmões. Ele era lindo, com aquele topete imenso e os traços femininos e os falsetes e passos de dança precisos que diziam “este é o homem da Renascença que a década de 90 tem a nos oferecer”. Eu gostava mais do Jordan do que do Marcinho da escola.

Os anos se passaram, o New Kids on the Block perdeu a graça, mas o Jordan ficou esquecido num canto da minha cabeça, e essa memória foi se reavivar em 1992, quando meus pais mandaram minha irmã e eu para um acampamento de férias.

Era o acampamento de um colégio de elite paulistano, embora nós não estudássemos lá nem morássemos na capital — minha tia, professora do colégio, indicou para meus pais, que nos mandaram. E talvez por ser uma menina criada no interior, tenha sido meio difícil fazer amizades naquele antro de riquinhos. Por sorte, conheci a Bebel e a Mariana logo no ônibus de viagem, e decidimos dividir um quarto só nós três. Tínhamos a mesma idade, éramos não-tão-ricas quanto as outras crianças e compartilhávamos de uma energia menina-moça que diferia da única garota mais velha que nós no acampamento, a Heloísa. A Heloísa era milionária, descolada e totalmente abelha-rainha. E o Duba Duba era da turma de meninos que rodeavam a Heloísa, pois estudavam todos na mesma classe da 6ª série.

Nem preciso dizer que o Duba Duba era a cara do Jordan Knight, ou não teria feito aquela introdução toda. Talvez um Jordan que ainda não tivesse dado o estirão da adolescência, mas muito parecido nos traços femininos, coloração pessoal e boné de time de basquete americano. E um doce de menino.

Como de costume, no começo ele nem tomou conhecimento da minha existência. Porém, um dia, numa atividade do acampamento, fizemos uma peça de teatro em que éramos marido e mulher — no caso, eu, o marido, e ele, a mulher. A partir daí, começamos a nos entrosar mais, embora já fosse fim de temporada e estivéssemos próximos de nos despedir. Na última noite de acampamento, então, uma atitude dele explodiu uma guerra:

Ele estava escovando os dentes no banheiro em frente ao meu quarto, e eu o observava sentada na minha cama. Quando terminou, nossos olhares se cruzaram. Baixei os olhos envergonhada. Já ele enxugou a boca numa toalha e a jogou na minha direção. Sem saber o que fazer com aquilo, reagi como meninas de 11 anos reagiriam: chamei ele de volta e atirei a toalha com força na cara dele.

— Sem condições! — ele protestou, do alto de seus 12 anos — Eu jogo uma toalha com um beijo pra você e é assim que sou recebido? Peraí que você vai ver!

E voltou com um copinho de água para me molhar. A partir daí, começou a Batalha dos Cosméticos, com guerra de shampoo, água com pasta de dente, hidratante St. Yves, toalhadas na bunda. As crianças mais velhas saíram de pijama de seus quartos e os monitores permitiram que o embate acontecesse do lado de fora do casarão. Em um momento, Duba Duba pediu para um amigo me segurar enquanto ele fazia pintinhas de pasta de dente Crest no meu rosto. Em troca, eu e a Juliana Tubaína fizemos uma mistura de todos os produtos de higiene disponíveis dentro de uma caneca e demos um toque final para jogar nos rapazes: nosso próprio xixi.

Eu realmente perdia o crush mas não perdia a piada.

A guerra cessou, a temporada acabou, nós voltamos para casa e nunca mais nos falamos, embora tivéssemos trocado telefones. Pra quê que eu ia ligar pra ele? Pra perguntar se ele lembrava do dia em que eu joguei MIJO nele e nos amigos, só porque ele me jogou uma toalha?

Um ano se passou e eu mantive eventual contato com a Bebel — e uma tentativa extremamente forçada de contato com a Heloísa, só porque ela era abelha-rainha rica de sobrenome hifenizado. Enfim, um dia liguei para a Bebel e ficamos colocando o assunto em dia. Fiz toda a ronda de perguntas sobre nossos colegas até finalmente chegar no que mais interessava: o Duba Duba. E ela emudeceu por alguns segundos.

— Você não soube?

— Não! O quê? Ele tá namorando? É a Heloísa?

— Não, é… faz já algum tempo… — ela gaguejava e tentava explicar — Foi assim: um dia ele tava mexendo no closet dos pais dele, aí ele achou uma arma e começou a brincar, aí ele fez um negócio que chama roleta-russa, parece. Só tinha uma bala no revólver, e foi a bala que matou ele.

Senti no estômago um peso insustentável. Na minha cabeça, estava tocando uma música do Michael Jackson com o Slash chamada Give In to Me, e ela imediatamente se tornou a trilha desse dia. Triste, nunca mais consegui ouvir sem pensar nele.

Depois de desligar o telefone com a Bebel, tive que ir para um evento do colégio, e o meu assunto era somente esse, a partida do menino que eu gostava. Eu chorava e parava, às vezes ria quando dizia que tinha me tornado viúva — um tipo de humor descompensado. Meus amigos não deram muita bola, por não o conhecerem, ou talvez por ainda não terem lidado com uma experiência de morte. Aquela mesma era minha primeira experiência do tipo, ninguém da minha idade tinha morrido de forma tão acidental e trágica assim.

Hoje, penso mais na dor dos pais e familiares do Duba Duba do que no que a perda dele significou para mim. Um menino de talvez 13 anos já completos, uma arma na casa, os pais revendo o funcionamento daquele núcleo depois que a tragédia aconteceu.

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