Muletinha
Há histórias e histórias de amor. Algumas, pode quebrar o botão F5 que jamais sairão do meu teclado. São histórias com o mesmo valor ecológico do plástico-filme: não serve pra reciclar e também não serve para adubo orgânico — seu destino é o lixo e pronto.
Agora, há uma história que preciso honrar, botar em palavras e eternizar o quanto foi importante pra mim. Ela não existe mais, faz muito tempo. Mas hoje, quando penso no que vivi, nos valores que me compõem e no amor que recebi para me tornar a mulher que sou, é indispensável reverenciar esse pedaço da minha vida.
Antes dela começar, eu andava vivendo numa tormenta. Foi nesse estado que adentrei. Deprimida, desconfiada, eternamente com um nó no estômago, ansiosa, com medo de saber coisas em geral. Ele não veio pra me tirar desse estado, não. Nos chamávamos carinhosamente de "muletinha", ele também vivendo seus momentos de mudança e escuridão. Foi a aproximação mais doce que já tive na vida, e me lembro com carinho da vez que ele foi me visitar e eu comecei a tremer — visivelmente — de nervoso.
Se pudesse ouvir a minha alma naquele ponto, sem intervenções externas nem idiossincrasias, estava claro que era ele quem eu queria. Mas, no olho do furacão, eu me recusava a botar os dois pés no presente. Eu tinha um caminhão de ressentimentos pra esvaziar, e isso tomava meu tempo. Mas nossos momentos, aqueles só nossos, pareciam vividos em cima de uma nuvem branca, no que deve ser o que chamam de Paraíso.
Eu cresci vendo as coisas serem feitas por mim, motivadas sempre pela necessidade. Já ele me provisionava por amor. Nesse período, eu vi meus desejos sendo atendidos, fosse um beijo demorado, um chocolate num dia difícil ou um aparelho doméstico que fosse melhorar nossos finais de semana juntos.
Um exemplo fica muito claro na minha memória, e me emociona até hoje:
Eu ia pegar um voo, e precisava passar num lugar onde ele estaria, antes de seguir para o aeroporto. Pendências resolvidas, passei por ele, que me estendeu um saco de papel e me desejou boa viagem. Seria uma viagem difícil, o motivo da mesma dolorido. Agradeci e entrei no táxi.
Veja bem: na minha cabeça, moída pelo então constante sentimento de baixo valor, ele me estendeu um resto de pão de queijo que estaria comendo. Aquilo para mim era perfeitamente plausível, eu estava de acordo. Mas, quando abri a embalagem, havia lá dentro um muffin de chocolate, que eu costumava pedir com frequência na lanchonete ao lado. Ele percebeu que eu tinha saído de casa sem tomar café. Se eu já andava chorosa, aquele choro pelo menos me mostrou que um ato de uma pessoa boa ainda podia me atingir. Ele era essa pessoa boa que eu queria ter na vida.
Foi preciso um tempo para ambos se acomodarem naquela relação. Idas, vindas, eu-quero-mas-melhor-não, uma redenção ao som de um saxofonista tocando Take Five na calçada da pizzaria Urca. Um medo paralisante de deixar sair o "eu te amo" que morava no fundo da garganta. Eventualmente, ele saiu.
Nunca fizemos planos para o futuro, tampouco conheci seus pais. Era um relacionamento profundo e raso ao mesmo tempo, em partes porque, hoje, sei dizer que não estava aberta àquela maturidade e presença de sentimentos e emoções. Eu queria guerra, ele estava cansado dela.
Carrego arrependimentos, é claro. Deles, os maiores têm a ver com o tempo das coisas e a idade que eu tinha na época. Eu era tão nova e tão calejada, tinha tanto a ser revisto internamente. O maior arrependimento, no entanto, foi deixar chegar a um ponto em que não poderia continuar. Já passou, faz parte da história.
Cada um seguiu seu rumo e eu fico genuinamente feliz com o pouco que sei da vida que ele leva. É claro, tem horas que penso onde estaríamos se a situação tivesse sido outra, e concluo que seríamos felizes, sim. Infelizmente, só posso responder por mim.
Em tempos de exposições e conclusões tardias de relacionamentos abusivos, precisava tirar essa pilha de memórias amorosas do meu peito e transformar em palavra. É isso que eu quero eternizar, e não o resto.