Natal, facada, queimadura de escapamento
Texto perdido e refeito
O Luiz era meu melhor amigo quando eu tinha 18 anos. Nossas atividades incluíam vadiar, fumar maconha e sair das festas pra andar de moto pela cidade de madrugada. Ah, e falar mal de absolutamente todo mundo; só a gente prestava. "A gente é os pi-ooor", ele dizia, com seu sotaque carregado do interior paulista.
Esse convívio era como ter um gostinho de liberdade numa vida muito cerceada. Pegávamos a moto e vagávamos pelas ruas conversando através dos capacetes, rindo sem parar. Uma vez, já bastante chapados, fizemos uma associação entre o rapaz que eu andava a fim e o coelhinho Sansão, da Turma da Mônica, enquanto Luiz fazia uma curva, e rimos tanto que ficamos muito perto de derrapar no asfalto. Ou eu já estava paranóica.
Das pessoas que olhavam por mim, nenhuma sabia desse nosso costume de passear de motocicleta, até porque era algo proibido. "Subir num veículo de duas rodas é a forma mais próxima de abraçar o sono eterno", era, em resumo, o que eu ouvia dos adultos. Eu queria ver para crer.
Num dia de Natal, escapei da função familiar e fui encontrar o Luiz para dar a nossa costumeira volta de moto. A cidade estava vazia, as pessoas se recuperavam dos lautos almoços, e nós rasgávamos a avenida que levava aos arrabaldes do município. Os bairros foram ficando cada vez mais residenciais, e as comemorações, mais externas. Foi quando avistamos à nossa frente um quarteirão onde acontecia uma aglomeração, e o Luiz não teve tempo de reagir: cruzou o que vimos ser uma briga, um homem grande e gordo brandindo um facão no ar, a velhinha frágil tentando detê-lo, o suposto atacado sendo escoltado pela turma do deixa-disso, as mulheres gritando horrorizadas.
Foi no meio deste cenário que a Yamaha do Luiz atravessou, a mão que sacudia a faca descendo em câmera lenta enquanto o restante do meu corpo acabava de transpor o trajeto, como num problema de física que cai no vestibular. Vuuuupt!, senti o ar pesado resvalar nas minhas costas.
— Luiz, eu tomei uma facada! Para a moto, eu acho que o cara me esfaqueou!!
Meu amigo foi diminuindo a velocidade até o quarteirão seguinte, onde não seríamos alcançados pela horda, que agora já devia nos considerar inimigos mortais. Desesperada, sentindo um sangue fictício escorrer pelo dorso, desmontei do veículo pelo lado errado e deixei parte da epiderme da panturrilha direita derretida no cano quente do escapamento. Saí pulando numa perna só, abanando costas e canela e repetindo "ai! ai! ai!".
Entre acessos de riso e de desespero, pausados por olhares arregalados um para o outro como quem diz "que porra foi essa que acabou de acontecer?", Luiz concluiu que não havia facada nenhuma ali. Era o caso de facada psicológica? As dores eram múltiplas, do machucado e do susto.
Montamos na motoca e voltamos cada qual para sua casa. Ainda tive tempo de criar uma história fantasiosa para justificar a aquisição daquela que é cicatriz de toda gata-garota, a queimadura de piriguete.