Quase-tragédia na vila Mieiro

Bia Bonduki
3 min readJun 22, 2021

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A vítima de negligência escapou por ali

As festas da vila Mieiro foram parte importante na minha infância. Lá, moravam amiguinhos, filhos de amigos dos meus pais, conhecidos e até crianças com as quais eu não fazia a menor questão de conviver — mas convivia ainda assim. Talvez porque, na minha infância, bastava juntar os pequenos e dar a amizade por construída. A julgar pela quantidade de crianças que lá viviam, coisa de duas por família, era uma média de três aniversários por mês, isso quando os pais não aproveitavam a proximidade das datas para fazer um grande folguedo. E quando as festas não eram celebradas ali, eram invariavelmente feitas no salão do Roque Raquete, o clube de tênis da cidade.

Ainda assim, imagino que para meus pais as festas na vila Mieiro tivessem desenvolvido, logo de saída, um gosto amargo de tragédia. Ou quase-tragédia.

Aqui relato os acontecimentos como minha mãe me contou:

Era 1983, porque eu tinha dois anos de idade. Recém-chegados à cidade, meus pais foram convidados para uma festa na casa da tia Ana, que àquela altura tinha somente três dos cinco filhos. Ao chegarem ao local, a filha mais velha, Vanessa, que devia ter uns oito anos na ocasião, me viu toda repolhuda e emperiquitada como de costume e pediu para minha mãe me deixar brincando com ela e suas amiguinhas. Conhecendo todo o grupo de meninas, e crendo que crianças daquela idade já seriam capazes de cuidar de outro ser humano, ela permitiu. Lêdo engano, mamãe.

Não demorou muito até as garotas se distraírem com qualquer outra coisa, fosse a presença de um mágico na festa, uma convocação para cantar parabéns ou até uma brincadeira de queimada, e me perderem de vista. E eu, do alto dos meus dois anos, fui caminhando para fora da vila e assim continuei, avançando pela cidade. Contei que já estava de noite? Pois é, já estava de noite.

Quando terminei de descer a rua Padre Anchieta, que dava na movimentada Avenida Três de Maio, não me restou outra opção a não ser atravessá-la. Quer dizer, acho que foi isso, porque atravessei. Em 1983 a iluminação urbana já não devia ser mais de lampiões a gás, mas também não era de lâmpadas de LED. Digo isso porque vinha na minha direção a Kombi do seu Cláudio, motorista que transportava as crianças que estudavam na mesma escolinha que eu, e ele achou que eu fosse um cachorro cruzando seu caminho. Quando ele buzinou para me “afastar”, eu me assustei, parei no meio da rua e ele freou bruscamente. Quando deu a luz alta na minha direção, notou que aquele cachorro era uma menininha de cachinhos, toda repolhuda e emperiquitada, de dois anos de idade.

Quis o destino que fosse o seu Cláudio o motorista a passar pela avenida naquele momento, e não qualquer outra pessoa, porque, acostumado a lidar com crianças, ele me botou na Kombi e saiu pelo bairro à procura de uma casa iluminada e com as portas abertas. Não demorou muito e ele encontrou a vila Mieiro em festa. Estacionou o carro, me pegou no colo e adentrou a casa aos berros:

– Quem são os IRRESPONSÁVEIS dos pais desta criança?

Mamãe levantou a mão, a outra segurando um copo de cerveja:

– Eu!

Seu Cláudio me devolveu, não sem antes contar a história de terror que acabou com o domingo dele e passou a atormentar minha mãe pelos próximos meses, em pesadelos vívidos. As meninas que cuidavam de mim não foram a julgamento, por conta da pouca idade. Por ser muito pequena naquela época, convivi com o motorista por anos na porta da escola sem saber que ele foi o meu salvador, mas sempre que penso nisso, agradeço por ele ter sido ser um homem que freia para cachorros e, consequentemente, para pequenas fugitivas de festinhas.

Nunca na história da humanidade a decisão de um desconhecido colocar uma criança numa Kombi foi tão acertada.

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Bia Bonduki
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