Raivas
Lembro que era começo de novembro. Tinha levado um pé na bunda na noite anterior e enfrentado duas horas de estrada sob efeito do Lexotan que minha mãe me deu antes de entrar no ônibus. Estava cansada, derrotada, a cabeça em vespeiro quando finalmente cheguei em casa, virei a chave na fechadura do meu apartamento e ela travou. Ok, acontecia sempre. Sinal que meu colega Cleiton estava lá e abriria pra mim.
Uma semana antes, houve uma morte na minha família. Apesar de não ter sido uma surpresa, foi trabalhoso lidar com todos os trâmites em uma cidade que não a minha. Uma vez resolvido, embora triste, era uma coisa a menos na lista interminável de coisas daquela semana: pedir demissão, fazer entrevista de visto, planejar minha mudança para o exterior. Não constava nesse rol o fim de relacionamento inesperado, tampouco a entrada de um estranho no meu apartamento. O Cleiton decidiu que essa terceira pessoa moraria ali durante os quatro meses que ficaria fora e eu que lidasse com isso. Nem estaria presente para me incomodar, ele argumentava. Bati o pé que não, ninguém ia se mudar para um lugar onde todos os contratos estavam em meu nome e todos os móveis me pertenciam sem a minha aprovação. Além do mais, eu já tinha escolhido outra pessoa pra ficar no meu lugar há muito mais tempo. Ele fingiu que entendeu e se aproveitou da minha ausência — missa de sétimo dia no interior — pra botar o cara de volta em casa.
Quando a chave não virou, dei as costumeiras batidinhas na porta, na esperança do Cleiton me ouvir. Nada. Bati com mais força, nada. Antes que começasse a esmurrar a porta, liguei para ele, que disse não estar em casa. Mas o tal fulano estava…
Corte seco: sobrancelhas arqueiam, pupilas se contraem, cabelos arrepiam no topo da cabeça, desligo o celular enquanto Cleiton ainda falava, passo a bater os punhos cerrados com força na madeira branca. A vizinha idosa espicha a cabeça para fora de seu apartamento, preocupada. Peço para usar o interfone dela, explico que minha chave emperrou e não estão me ouvindo lá de dentro. Ela concorda e me faz entrar, mas de nada adianta, ninguém atende. Volto para a entrada de casa e começo a chutar a porta, como se tivesse força para derrubá-la. A maçaneta vira e vejo um rapaz de não mais que 20 anos, trajando uma cueca samba-canção e com o cabelo de quem acabou de acordar.
Atravesso o batente como um trem-bala e ele se retira assustado do meu caminho.
– Eu falei pra você ir embora, que parte você não entendeu?
– Eu tô procurando apartamento ainda, não tenho para onde…
– Dormindo até as duas da tarde você não vai achar onde morar mesmo. ZULA. SOME DAQUI. Vai, bota roupa e cai fora. — Minha voz superava o limite de decibéis aceitável em um condomínio residencial enquanto eu batia palmas ritmando cada ordem.
Entrei no banheiro e tinha um baita catarro verde e cinza cuspido na pia. Urrei entredentes, a potência da minha raiva capaz de trincar os espelhos da casa, enquanto o rapaz catava os pertences e dava no pé. Avisei o porteiro que ele estava impedido de entrar no prédio, mesmo na companhia do Cleiton, que foi posto pra fora na semana seguinte.
— x —
Quando fico brava, eu não grito, eu falo alto e claro. Minha voz ganha corpo, reverbera, meu olhar fica pungente, hiperfocado, como se pudesse perfurar a carne do meu inimigo. Sinto uma força que é capaz de destruir concreto com as mãos, mas a vontade é de ferir com crueldade. Um dedo no olho, um murro na boca, uma ofensa indesculpável.
— x —
Minha irmã se acidentou na neve. Escorregou e caiu de cabeça no chão e perdeu a memória recente. Antes que eu sequer soubesse se ela estava viva ou sem sequelas, pessoas se amontoavam para ver a menina estatelada. A ambulância estava a caminho, dois policiais se aproximavam. Toquei suas pernas e perguntei se ela sentia alguma coisa. Precisava ter cautela nos movimentos.
Todo cuidado não impediu que uma imbecil de sotaque fluminense se aproximasse decidida a aquecer minha pobre irmãzinha. Nem o aviso monótono dos policiais de não tocar na vítima a deteve: sentou minha irmã no chão e a abraçou, "coitada, tá frio". Escrever essas linhas me tensiona por inteiro. A raiva que eu ainda sinto. "Deixa… a menina… aí…", eu grunhia em voz alta, tendo que ser puxada para trás por presentes, ou teriam que chamar outra ambulância. A criatura acabou se afastando constrangida enquanto uma outra amiga se ajoelhava ao lado do corpo, em prece, pedindo que nenhuma vértebra tivesse se rompido nessa movimentação desnecessária.
Fiquei tão exaurida com essa interação que, ao saber que fora meu amigo quem causou o acidente, não tive energia para brigar com ele. Pudera, essa revelação foi feita durante a madrugada, que ele passou acordado na sala de espera do ambulatório, em penitência.